O deserto nos leva a perguntar a nós mesmos: o que é mais
importante na minha vida?
Jesus começou sua vida pública, para inaugurar o Reino de Deus
entre nós, e levar a cabo a nossa salvação, sendo batizado no rio Jordão pelo
Batista, apesar dos protestos de João, fazendo-se solidário com os pecadores, e
assumindo a figura de Servo de Javé” (Is 53), sofredor, para cumprir toda a
justiça. É o que o mesmo João já tinha anunciado a seus discípulos: “Ele é o
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29).
Como chefe de um Corpo Místico, Ele assume sobre si os pecados da
humanidade diante da Justiça divina; e começa a expiá-los nos quarenta dias de
jejum e oração que passa no deserto. Ali Ele enfrenta Satanás, o mesmo que
tinha vencido Adão e Eva no Paraíso; agora Jesus, como o novo Adão, vai
vencê-lo e começar a nos arranjar de seu jugo.
O Evangelista no diz que “cheio do Espírito Santo, voltou Jesus do
Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde foi tentado pelo demônio”
(Lc 4,1). Ali Jesus o venceu, e nos ensinou como nós também devemos vencer as
tentações: com jejum, mortificação, oração e a Palavra de Deus que Ele lançou
três vezes no rosto de Satanás, sem que este pudesse resisti-la, e recua.
No deserto Jesus fez penitência por nós. A Carta aos hebreus diz
que “Ele mesmo foi provado em tudo como nós, exceto no pecado” (Hb 4,15). O
deserto, para onde Jesus se retira, é o lugar do silêncio, da pobreza, onde não
há recursos materiais e o homem se encontra diante das questões fundamentais da
existência, e por isto lhe é mais fácil encontrar a Deus. Mas o deserto é
também o lugar de morte, porque onde não tem água, não tem vida, é o lugar da
solidão, onde o homem sente mais a tentação, como nos ensinaram os Padres do
deserto. O demônio disse a Santo Antão que ali era o seu lugar. O deserto nos
leva a perguntar a nós mesmos: o que é mais importante na minha vida?
Jesus vai para o deserto, como homem, como o novo Adão que assume
nele toda a humanidade, como o primeiro; e lá é tentado a desviar-se do caminho
indicado pelo Pai para seguir outros caminhos mais fáceis e mundanos (cf. Lc
4,1-13). Assim, Ele assume as nossas tentações, leva consigo a nossa miséria,
para vencer o maligno e para abrir-nos o caminho para Deus, o caminho da
conversão. Sem dúvida Jesus se questionou profundamente, como nós, quando somos
tentados.
É isso que o demônio vai por no coração de Jesus, como faz
conosco. Vem propor a Jesus ser esse Messias temporal, glorioso, que o povo
enganado esperava. Sugere, então, que Ele faça grandes milagres, começando a
transformar pedras em pães, no momento da fome, para mostrar que é o Filho de
Deus. Mas Jesus o afasta com a força da Palavra de Deus: “Está escrito, nem só
de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3; Mt
4,4). Jesus conhecia bem as Escrituras, e de cor. Ele não fará milagres inúteis,
mas se abandonará nas mãos do Pai. Não será por meio de prodígios
extraordinários que Ele estabelecerá seu Reino na terra, mas pela pregação,
pelo sacrifício dele e dos seus, pela paciência, humildade, bondade…
São João Paulo II disse um dia que “o povo tem mais fome de Deus
do que de pão”. Sem uma resposta à fome da verdade, à fome de Deus, o homem não
pode ser salvo. Não adianta dar pão ao homem, sem dar Deus, ele se torna pior.
Na segunda tentação, o diabo propõe a Jesus o caminho do poder: o
conduz, em espírito, ao alto de uma montanha, e lhe oferece o domínio sobre
todos os reinos do mundo, desde que Ele o adore. Mas este não é o caminho de
Deus: Jesus tem muito claro que não é o poder mundano que salva o mundo, mas o
poder da cruz, da humildade, do amor. Jesus o afasta novamente no poder da
Palavra: “Está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás” (Mt
4,10). É um risco aceitar “adorar o demônio”, aceitando tudo que o mundo nos
oferece contra a lei de Deus. “De que vale ganhar o mundo inteiro se vier a
perder a sua alma”. Não será por meios humanos que Jesus estabelecerá o Seu
Reino, mas suportando com paciência a vontade do Pai.
Para entender a tentação de Jesus é precioso entender também o
seguinte: o povo judeu esperava um Messias triunfante, que por grandes milagres
restabeleceria o Reino de Israel, político e terreno, como no tempo de Davi e o
estenderia até os confins da terra. Acreditavam que na solenidade da Páscoa
judaica, a maior festa religiosa, o Messias se lançasse do Pináculo do Templo
de Jerusalém e desceria rodeado de anjos, como diz o Salmo 90; “eles te
sustentarão em suas mãos para que teus pés não tropecem em alguma pedra”. E ali
na cidade santa, seria, então, acolhido como o Rei de todo os povos.
Na terceira tentação, o diabo propõe a Jesus atirar-se do ponto
mais alto do Templo de Jerusalém e fazer-se salvar por Deus mediante seus
anjos, isto é, de fazer algo de sensacional para colocar à prova o próprio
Deus; mas a resposta de Jesus é que não podemos impor a Deus as nossas
condições: Ele é o Senhor de tudo. É interessante que o demônio cita o Salmo 90
para Jesus; ele também conhece a Sagrada Escritura, e a usa para a nossa
perdição. Mas Jesus novamente saca da Palavra de Deus e lança-lhe no rosto:
“Está escrito; não tentarás o Senhor teu Deus” (Dt 6,16; Lc 4,12). Então o
demônio se afastou depois de tê-lo tentado de todos os modos, diz São Lucas.
Bento XVI disse em uma de suas homilias que “o núcleo das
tentações que Jesus sofreu é a proposta de manipular a Deus, de usá-Lo para os
próprios interesses, para a própria glória e para o próprio sucesso. De colocar
a si mesmo no lugar de Deus, retirando-O da própria existência e fazendo-O
parecer supérfluo. Cada um deveria perguntar-se: qual é o lugar de Deus na
minha vida? É Ele é o Senhor ou sou eu?”
Dar a Deus o primeiro lugar, é um caminho que temos de percorrer
sempre de novo. Diz Bento XVI: “Converter-se significa seguir Jesus de modo que
o seu Evangelho seja guia concreto da vida; significa deixar que Deus nos
transforme, parar de pensar que somos os únicos construtores da nossa
existência; é reconhecer que somos criaturas, que dependemos de Deus, do seu
amor, e apenas “perdendo” a nossa vida Nele podemos ganhá-la… Mesmo quem nasceu
em uma família cristã, a cada dia, renovar a escolha de ser cristão, ou seja,
dar a Deus o primeiro lugar, diante das tentações que uma cultura secularizada".
Prof. Felipe Aquino
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