No ano 144 d.C., durante um dos momentos mais
difíceis da História da Igreja Católica, surgiu a heresia Marcionita que logo
se estenderia principalmente pelo Império Bizantino e sobreviveria pelos
próximos três séculos, até ser absorvida pelo Maniqueísmo e desaparecer. É
possível que seu fundador, Marcião, fosse filho de um dos primeiros bispos de
Sinope, uma diocese da Ásia Menor, de onde Marcião era originário. Há quem
suponha (baseando-se na conhecida habilidade de Marcião para citar as
Escrituras) que ele fosse um bispo renegado pela Igreja. Qualquer que fosse o
caso, o certo é que Marcião deu origem a uma das mais persistentes heresias de
seu tempo e, para isso, fez uso, pela primeira vez, de certas armas que todos
os cristãos dissidentes empregariam no futuro até os nossos dias.
O gênio divisionista de Marcião criou uma nova doutrina pseudocristã,
modificando a História Sagrada e publicando um cânon próprio das Escrituras.
Isto que hoje nos parece tão familiar - depois de tantos séculos de Bíblias
cerceadas, lendas negras e traduções deturpadas da Escritura - era então uma
assombrosa novidade que cativou a muitos. Marcião sustentava, como muitos
vieram a fazer desde então, que o Deus do Antigo Testamento era vingativo e
colérico, que não podia corresponder à mansa e amorosa pessoa de Jesus. A
partir de então, desenvolveu uma doutrina dualista que sustentava a existência
de duas divindades, uma má (a do Antigo Testamento) e outra boa (a do Novo
Testamento).
Ao iniciar uma nova igreja, sempre se tropeça com este problema: o que fazer
com a Igreja Católica? Marcião não podia destruir a Igreja de Cristo, porém,
podia desqualificá-la. Para isso, teve uma idéia que para nós parece bem
desgastada, mas que era muito original naquela época: usar as Escrituras para
impugnar a veracidade da doutrina católica.
O problema de usar essa estratégia é que as Escrituras do Antigo Testamento -
inspiradas por um "deus mau", segundo Marcião - ofereciam amplo e
suficiente testemunho da futura vinda de Jesus. Essa "pequena"
inconsistência não foi grande problema para o líder herege, que declarou nulo
todo o Antigo Testamento. Ao fazer isto, Marcião estabeleceu outro grande
princípio, que quase todo movimento herético seguiria no futuro: eliminar as
partes da Bíblia que não convenham à nova doutrina enquanto que, ao mesmo
tempo, se exalta a Escritura (modificada) como a autoridade sobre a qual o novo
grupo eclesial é fundado.
Recordemos que Marcião apareceu no cenário cristã menos de cinco décadas depois
de ter falecido o último Apóstolo de Cristo. A Igreja de então suportava
frequentes perseguições, algumas locais e outras mais estendidas. Os Evangelhos
e os demais escritos cristãos circulavam sem que houvesse um cânon definido e
universal. A Bíblia da Igreja Católica desses anos era a versão dos LXX (ou
Septuaginta Alexandrina), que consistia basicamente dos livros que hoje
encontramos no Antigo Testamento da Bíblia Católica.
As razões para a ausência de um cânon cristão eram várias, principalmente as
constantes perseguições que tornavam impossível aos bispos se reunirem em
sínodos gerais, os quais seriam muito perigosos por razões óbvias. Passariam-se
quase três séculos até que se apagassem as perseguições imperiais e os bispos
pudessem se reunir livremente para considerar quais escritos deveriam ser aprovados
para sua inclusão no Novo Testamento. Uma das boas coisas que ocorreu por
consequência da heresia marcionita foi justamente isto: a Igreja Católica tomou
consciência da importância de possuir uma lista ordenada de escritos cristãos
autorizados.
Antes que a Igreja pudesse produzir tal lista, Marcião criou um
"evangelho" de sua própria lavra. Nele declarava que o invisível,
indescritível e benévolo Deus (aoratos akatanomastos agathos theos) teria se
apresentado entre os judeus pregando no dia de sábado. O pseudo-evangelho de
Marcião era uma versão modificada do Evangelho de Lucas, editado para apoiar as
doutrinas dualistas do fundador da seita.
A esta altura, encontramos
no movimento marcionista as características que logo se repetem nas heresias
surgidas posteriormente:
1. A base da doutrina é um texto - a Escritura - e
não o Depósito da Fé recebido por toda a comunidade, como na Igreja Católica.
2. O texto da Escritura é alterado ou redigido para
afirmar as doutrinas do novo grupo, criando assim uma nova e distinta tradição.
O oposto ocorre na Igreja Católica, que preserva cuidadosamente e exalta o
papel da Escritura dentro do contexto da Sagrada Tradição.
3. Altera-se o contexto histórico ou até a própria História. Isto
é feito com o duplo sentido de afirmar a própria doutrina e, ao mesmo tempo,
impugnar a Igreja Católica, acusando-a de ser ela quem "conta a História à
sua maneira". Curiosamente, estas acusações tão imaturas imprimiram na
Igreja o costume de documentar o desenvolvimento da sua própria doutrina na
História. Na Igreja Católica a História, as Escrituras e a Doutrina da Igreja
devem estar obrigatoriamente de acordo, sempre sem deixar espaço para dúvidas.
É por isso que sabemos com certeza que hoje cremos na mesma fé declarada por
Cristo e pelos Apóstolos.
Consequentemente, um dos testemunhos mais fortes que pode ser oferecido em
favor do Catolicismo é a sua consistência e coerência durante vinte [e um]
séculos de História. O mesmo não ocorreu com os marcionitas, que se dividiram
em diversas seitas e, de uma espécie de puritanismo original, logo passaram
para o Gnosticismo e, depois, para o Maniqueísmo, movimento que acabou
absorvendo o Marcionismo por completo. Disto podemos deduzir uma quarta
característica das heresias: sua instabilidade.
4. A instabilidade doutrinária e sua consequência (as divisões sectárias),
identificam todas as heresias. Seguindo o ditado de "quem com o ferro
mata, pelo ferro morrerá", os criadores de divisões na Igreja logo recebem
na própria carne o seu amargo remédio.
Podemos afirmar, sem medo de errar, que todos os movimentos dissidentes do Cristianismo
que se afastaram da Igreja Católica possuem estas quatro características em
menor ou maior grau. Quando Cristo pregou a parábola da videira, disse assim:
"Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o
lavrador. Toda a vara em mim, que não dá fruto, a tira; e limpa toda aquela que
dá fruto, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos, pela palavra que vos
tenho falado. Estai em mim, e eu em vós; como a vara de si mesma não pode dar
fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes em mim.
Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito
fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não estiver em mim, será
lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem. Se
vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o
que quiserdes, e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai, que deis muito
fruto; e assim sereis meus discípulos. Como o Pai me amou, também eu vos amei a
vós; permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis
no meu amor; do mesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e
permaneço no seu amor. Tenho-vos dito isto, para que o meu gozo permaneça em
vós, e o vosso gozo seja completo. O meu mandamento é este: Que vos ameis uns
aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este, de dar
alguém a sua vida pelos seus amigos. Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que
eu vos mando" (João 15,1-14).
É inegável a importância destas palavras de Cristo. A Igreja deve
operar em união com Cristo e em unidade interna. É a única maneira de produzir
"fruto", isto é, a salvação das almas. Quem espera agir fora desta
ordem que Cristo estabeleceu deixa de permanecer em Seu amor. Para permanecer
no amor de Cristo, entende-se que devemos guardar os Seus mandamentos. Nesta
simples parábola, Cristo resumiu as qualidades da Igreja que deverá durar até o
fim do mundo. Todas elas provêm do amor cristão:
- A primeira qualidade é a humildade. Cristo é a videira, a plenitude
da fé e o todo da Igreja, enquanto que seus discípulos são os ramos que se
nutrem Dele. Não existe outra ordem pela qual algum dos ramos possa dar origem
a outra videira distinta.
- A segunda qualidade é a obediência. Somos amigos de Cristo se fizermos o que
Ele nos diz. Não há outra opção se O amamos.
- A terceira qualidade é consequência das outras duas: a união. A
indivisibilidade da planta produz fruto que dá glória a Deus em Cristo. Essa
união é o resultado visível do amor que começa em Cristo e se multiplica nos
discípulos.
Como não ocorre - nem nunca ocorrerá - entre
aqueles que se separam da Igreja Católica, estas três qualidades distintas
produzem o milagre da duração da Igreja na História, que é por si mesma um
poderoso testemunho da verdade do Evangelho. Quando Cristo nos adverte que sem
Ele não podemos fazer nada, também agrega que nossa relação com Ele só pode ser
frutífera. Sem Cristo, os ramos morrem sem dar fruto; com Cristo, a Igreja
continua no mundo e na História, dando testemunho do Seu amor em perfeita
união. Este é o fruto cristão por excelência!
Tendo comparado as qualidades próprias das heresias
e da Igreja, não nos surpreende que as Palavras de Cristo se cumpram na
História. Apenas a Igreja fundada por Cristo sobrevive dando testemunho ao
longo dos séculos e ao mundo inteiro com a doutrina integral recebida de
Cristo. Não importa quão numerosos sejam os membros de uma seita; sabemos que
passarão enquanto que a Igreja continuará sua missão até que Jesus retorne. Os
poderes malignos continuarão criando divisões, pois isto é da sua natureza;
mesmo assim, não prevalecerão contra toda a Igreja (Mateus 16,13-20).
A Igreja já viu passar centenas de seitas,
movimentos dissidentes, heresias crassas e toda espécie de inimigos. O
testemunho da História é apenas um: a Igreja SEMPRE permanece e seus inimigos
SEMPRE passam, pouco importando quão forte ou astuto tenham sido seus adversários.
Aquele que a sustenta nunca dorme e Seu braço protetor jamais descansa!
Tradução:
Carlos Martins Nabeto
Fonte: Respostas Católicas
Imagem Google
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