2. Inspiração
Um dos principais conceitos a ser examinado para uma melhor compreensão
da Bíblia é o de inspiração. O que significa dizer que os livros bíblicos são
inspirados, de onde vem esta inspiração, até que ponto o que é escrito
representa a mensagem de Deus ou do hagiógrafo (escritor sagrado)? Ao longo da
história, os estudiosos procuraram esclarecer este conceito básico e, é claro,
sempre houve divergências entre eles. Apresentamos aqui algumas reflexões sobre
este importante conceito.
Na inspiração distinguimos dois aspectos: dogmático e especulativo.
O dogmático pode ser expresso como resposta à pergunta: por que
acreditamos que a Bíblia é um livro inspirado? Isto não se pode provar pela
própria Bíblia. Busca-se então provar pelo fundamento histórico. Os evangelhos,
por exemplo, são históricos. Há uma tradição desde os tempos dos Apóstolos que
cita a Escritura como autoridade divina ( Mt 1, 22; Mt 22, 31; Mc 7,10; Jo 10,
35; At 1,16; Lc 22, 37; Heb 3, 7; 10,15 ). Em 2Tim 3,16, aparece pela primeira
vez a palavra 'theopneustos', ou seja, inspirada por Deus.
O especulativo pode ser expresso como resposta à pergunta: em que
consiste a inspiração? Este é mais complicado e será exposto com mais detalhes.
a)Modo da inspiração
É muito discutido o modo como se dá a inspiração do escritor sagrado.
Bañez afirmou que era um ditado. Mas em II Mac 2, 19-23, o autor se refere a um
resumo de 5 livros em um só, cujo resumo lhe custou "suores e noites de
vigília". Como é que foi um ditado se houve o esforço dele para elaborar a
síntese? Do mesmo modo Lucas (Lc l,1) escreve: "depois de haver
diligentemente investigado tudo desde o principio, resolvi escrever... ",
logo não foi simplesmente um 'ditado' da parte de Deus.
Em reação à teoria do ditado veio
outra que disse o contrário: a inspiração é a aprovação que a Igreja dá ao
livro. O fato estar colocado no cânon é a garantia da própria inspiração. Esta
tese foi defendida por poucos e não teve grande aceitação nos meios católicos.
O Cardeal Franzelin propôs uma nova fórmula: nem tudo é de Deus nem tudo
é do homem, mas as ideias são de Deus e as palavras são do homem. Obteve um
certo sucesso, mas ainda não explicou de todo. Sto. Tomás de Aquino propusera a
teoria da "causa instrumental": são os dois ao mesmo tempo - Deus e o
Homem. Ambos estão presentes em toda a obra, Um é o autor principal e o outro o
autor secundário. A inspiração eleva, sublima as faculdades do autor. Pode até
ser admitida esta teoria, entretanto, convém lembrar que tudo que está na
Bíblia é inspirado, embora nem tudo seja revelado.
b) Funcionamento psicológico da
inspiração
Em II Mac, conforme mencionado acima, o autor se refere a um resumo do
livro que um certo Jazão escreveu. De 5 volumes ele reduziu a um só. Como dizer
que isto é palavra inspirada por Deus, como se explica aí a inspiração divina?
Comecemos por analisar as operações do intelecto: apreensão, juízo e
raciocínio. Elas seguem um grau de aprofundamento e refinamento do saber.
Pode-se ter uma inspiração de Deus logo no primeiro momento (na apreensão),
como se pode ter depois, no juízo ou também nos dois. Quando a inspiração é
logo na apreensão, se diz 'revelação'. Quando, como no caso do II Mac, a apreensão
é do autor, a inspiração se dá no segundo momento, ou seja, no juízo, enquanto
na apreciação que ele faz da obra está sendo iluminado pelo Espírito Santo. Na
confecção destes livros, a questão da inspiração é que o autor estava iluminado
pelo Espirito Santo para dizer o fato corretamente, sem poder errar no
julgamento. Embora ele não esteja consciente disso, a ação do Espírito Santo
está sendo exercida no seu intelecto.
Mas, pode-se questionar: como se sabe se ele foi ou não inspirado quando
nem ele mesmo pode perceber isso? Aí passa a ser uma questão de fé. Tenta-se
explicar o fato, mas não se afirma que seja assim. 0 discernir se o livro é ou
não inspirado, dado o que acontece com o autor, é alçada da Igreja, que também
é inspirada pelo Espírito Santo. É uma questão fundamentalmente de fé.
Por isso, para a definição do livros autênticos, reconhecidos pela
Igreja Católica, os Cânones foram aprovados em Concílios, nos quais se
discutiram certas dúvidas a respeito de alguns livros, se eram ou não inspirados.
Nas discussões, procurou-se ver na historia da Igreja, desde os cristãos
primitivos até aquela época, quais os livros que durante os séculos sempre
foram lidos nas Igrejas e, baseada no consenso, ela constituiu o cânon. Sem
dúvida, a tradição antiga é mais fidedigna, pois está mais próxima dos tempos
apostólicos.
Mas, voltando ao conceito do juízo, ele pode ser especulativo ou
prático. Especulativo quando tem por fim o verdadeiro; prático guando tem por
fim o bem. No caso de Jonas, por exemplo, o juízo do autor não foi
especulativo, mas prático. Jonas teve o sonho em que Deus o mandava pregar em
Nínive. Ora, raciocinou ele, Javé é Deus de Israel, e não deve ser falado aos
pagãos. Então tomou o navio para outro lugar, e aí entra a história da baleia...
A finalidade do autor era convencer a todos que Javé era o Deus universal,
contra uma certa corrente judia que negava fato, ou melhor, não gostava da ideia.
Para se entender cada página da Bíblia deve-se ter em mente a
finalidade, a intenção do autor ao escrever cada parte do livro. Não se pode
abrir o livro em qualquer parte e ler tudo com o mesmo espirito. Na antiga
concepção de inspiração (ditado) não se considerava este problema. Tudo que lá
estava se acreditava "ao pé da letra". Não se podia duvidar. Mas esta
é hoje uma prática mais comum em algumas igrejas protestantes, geralmente
praticada por pessoas com conhecimentos teológicos limitados e reducionistas.
Uma consequência direta da inspiração é o dom da inerrância. Se o livro
é inspirado, logo o que contém é verdade. Porém esta verdade não está ali
imediatamente evidente, ela precisa ser alcançada pela reflexão animada pela
fé, ou seja, a razão e a fé ajudando-se mutuamente. "
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